Você escreve em diário?

A escrita em diários, torna-se uma "escrita de si". Uma coisa íntima e intransferível. Nenhum diário é como outro, assim como nenhuma pessoa é como outra. 




Tem momentos na vida que nossa mente é uma bagunça. Nossa vida é uma bagunça. Nossas ações são confusas ou estamos no mínimo, perdidos ou perdidas. Por isso, o olhar de fora para dentro é importante para nos "realinhar". Contudo, não é fácil sair de si para se enxergar, mesmo nas falhas. Então é preciso externalizar o nosso eu. Colocar para fora a dor, a confusão, a bagunça. 

Os diários são ótimos para isso.  Não é coisa de "menininha" como na maioria das vezes nos fizeram ou fazem crer. É coisa de gente, e só. É coisa de quem quer se organizar emocionalmente, de quem quer compreender não só a própria racionalidade como também a sua existência. 

Foram os diários que me curaram de coisas que eu sequer sabia. Prioritariamente na adolescência, onde meus sentimentos engolidos doíam tanto quanto pequenos ralados no joelho. Ser a menina boazinha tem um preço alto demais para uma garotinha crescendo, ser a mocinha comportada também é um preço alto para a adolescente em busca de si. Apenas hoje, adulta e com caráter formado, é que eu compreendo a deliciosa necessidade natural e libertadora da rebeldia. Mas, na minha vida... Eu não pude ser rebelde. Talvez, se tivesse sido, tantos nós em minha garganta teriam sido evitados.

A verdade é que ninguém é capaz de reconhecer, ou apenas, tomar consciência da imensa profundidade de coisas e sentimentos que há em você. Podem dizer que lhe conhecem como a palma da mão, mas não. Não conhecem, não. Nem você se conhece assim, quem dirá o outro! 

Aliás... Que coisa mais prepotente, não é? Uma pessoa ousar dizer que conhece a outra como a palma da mão. Embora, talvez esteja certo... Como a palma da mão: na superficialidade que é uma palma. 

Se ninguém te conhece melhor do que você, e se você não se conhece tanto assim, então quem lhe conhece? Eu tenho uma resposta para isso. A resposta que me acompanha há anos... Aquele ou aquela que melhor me conhece, é o "eu" não dito. É o "eu" camuflado. É o "eu" vestígio.

O "eu não dito", o "eu camuflado" e "eu vestígio", são aqueles fragmentos de si, deixados por seu inconsciente por aí. Como alguém que deixa pistas involuntariamente de tudo o que, se é de verdade. Alguém que deixa subtendido em uma expressão do olhar o que sente naquele momento ou como se sente. Alguém que deixa um vestígio do que gostaria de falar, mas não fala, quando rabisca um versinho em bilhetes de geladeira. Alguém que camufla os sentimentos reais quando escreve em literatura e diz "é o que o personagem sente". E ainda... É aquele que se esconde inteiramente no desejo de, na verdade, se encontrar; e o faz ao escrever um diário.

Minha trajetória com diários começou na infância. A mamãe me presenteou com um pequeno, da Barbie, de cadeado e tudo. E eu sequer me lembro o quê escrevia nele, mas acho que eram devaneios. Porque eu não entendia muito bem como fazer isso: escrever diários. Eu fui aprendendo a escrevê-los à medida que crescia. Fui entendendo como funcionava... Aos poucos descobri que um diário não era sobre escrever versinhos apaixonados para esconder, nem mesmo para dividir segredos íntimos com o papel. Um diário, era para se conhecer. Se encontrar. Se enxergar. 

O diário é aquele "olhar de fora" ou "do outro" que tantas vezes buscamos externamente, para aprender a compreender o que temos dentro de nós, ou de uma situação. O diário é aquele que melhor te conhece, porque nele está o seu "eu" sapiente de tudo em torno de você, ainda que nem mesmo você saiba direito o que ele quer dizer.
 
Um diário é um invólucro da sua alma escrita e da sua psicose nua. É um modo de você consultar diferentes versões de si, em diferentes tempos e assim, descobrir-se em diferentes personalidades ou interpretações. 

Diários são portanto um todo de cura: é a sua psicologia exposta, é a sua arte exposta, é a sua intimidade exposta, é a sua existência registrada em palavras. 

Dos diários, eu fui para os "webdiários", pois, como disse no início desse texto, na minha confusa, silenciosa e bem comportada adolescência, havia muitos gritos revoltados e soluços de lágrimas incompreendidas guardados em mim. Então, fui me desfazendo em textos para não desfazer minha pessoalidade completamente. E que bom que eu tive essa válvula de escape!

Para uma jovem adolescente superprotegida, uma adolescente com sede e anseio de conhecer o mundo, sobretudo, o próprio mundo interior... Para essa jovem mulher que ia florescendo meio perdida, meio certeira em mim, as palavras foram a maior fonte de cura. 

Escrever era uma terapia autônoma. 

Eu não sabia definir ou explicar meus sentimentos, mas a minha inquietude encontrou um mínimo sossego quando eu escrevia. E um dia quando escrever para eu, somente, não mais bastava... Uma professora me aconselhou: "escreva um blogue, faça dele seu diário por meio da arte, comunique-se com o mundo através dessa literatura que te faz companhia...". 

Os livros eram os únicos amigos que a vida de vai-e-vens não me tirava. A literatura era o único idioma que eu melhor compreendia. E as fantasias eram a fuga das minhas inseguranças e da minha realidade incerta, a qual eu sempre tive medo.

E desde o meu diário, agora compartilharei um segredo: nunca gostei de ficar sozinha, nunca gostei da ideia da solidão ser companheira, mas ela foi. Ela é. E eu aprendi a lidar com esse sentimento melancólico por meio da escrita. Na verdade, eu sempre fui falante demais, intensa demais, porém, intocada demais. 

Eis aí uma razão que tanto me faz sentir conexão com Lispector: tanto a Clarice quanto eu, sempre concordamos em algo... Que nos compreender era uma questão de sentir e entrar em contato. "Ou toca, ou não toca". Porém, não sei a Clarice, mas eu... Sempre fui e estive distante demais do que literalmente poderia permitir conhecer-me.
 
Na adolescência eu percebi que a filha boazinha e comportada, era também uma jovem com muito a falar, perguntar, mas sem coragem de expor muito dos seus pensamentos. A escola foi me moldando a ser mais comunicativa sem medo. Era aluna exemplar, de uma oratória impecável, de um pensamento perspicaz e aos poucos, confiante das suas falas. Mas era só na escola, e no blogue. O blogue também me ensinou a falar sem medo. A escrever sem pontos finais. A ecoar a voz do diário de toda uma infância, até então, mudo e secreto. 

Não me recordo de nada que eu tenha escrito em meus diários de papel, mas recordo e tenho registro de tudo o que escrevi nos meus blogues, e sei o que cada texto carrega em sentimento. 

E toda vez que olho para trás, eu noto que a minha descoberta e autoconhecimento sempre se deram por meio das minhas próprias palavras. Por meio do que eu sentia, escrevia, escrevia e sentia. 

Se não fossem os diários, onde os meus "eu não dito, camuflado e vestígio" teriam ido parar? Se não fossem os diários, eu reconheceria a minha própria voz? 

Um mundo de descobertas, intrincado, virtuoso, perigoso e profundo é a "escrita de si". No meu livro "Caminho das Palavras", eu ensino sobre essa relação entre a autenticidade, a palavra escrita e a humanidade que há em nós. 





E todos os dias que eu retomo esse assunto percebo que depois das crônicas, escrever sobre meus sentimentos é o que eu mais gosto de fazer. No diário de papel, no blogue, em uma crônica, um poema, ou dentro de personagens de romance. É que na palavra, eu transbordo.

E transbordar é ser livre. Por isso, eu te pergunto: você escreve em diário?

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