"A liberdade é uma forma de autonomia que se inicia quando o homem, ousadamente, vai em busca da sua individualidade." - Jorge Miguel.
Miguel cita também o poema "A Alvorada do Amor" de Bilac, para comparar suas ideias. Tal poema demonstra a coragem e a felicidade do homem ao experimentar a liberdade.
Partiremos aos contos, de fato. Então preparem-se para a diversão.
1º - "Faze depressa o que tens para fazer".
Nesse conto predomina o Fundamentalismo.
O enredo gira em torno de dois personagens apenas. Inácio, homem religioso que acredita e segue fielmente os dogmas cristãos. Dono de uma editora de livros religiosos conhece um dia Ulisses, um rapaz bonito e inteligente, também conhecedor do cristianismo. Ulisses se considera cristão, porém confronta-se frequentemente com os ideais católicos e as sagradas escrituras. Inácio nunca tivera amigos e cria um enlace muito forte e indesejado com Ulisses. Vê na figura dele um inimigo, uma pessoa desprezível por seus ideais, indiretamente passa a observar Ulisses como alguém que deve salvar, mas tem medo. Cria-se um sofrimento de Inácio pela relação conturbada com Ulisses, esse que sempre tenta provar o contrário das crenças do dono da editora. O ápice da história ocorre quando o fundamentalista se vê apaixonado pelo outro rapaz , e mantendo a ideia de que o rapaz de aparência angelical é um demônio, não abandona sua religião, fé e crenças chegando até mutilar-se.
Na página 35, Ulisses afirma que "o mau é obra humana, Deus não castiga e nem prega a maldade, temos todos o livre arbítrio em escolher bem ou mal" e isso torna-se novo confronto para Inácio.
O fato de Ulisses colocar o novo testamento como "história reinventada" sobre o antigo testamento, corrói com as dúvidas escondidas de Inácio. Em um trecho ele cita "Que vira ele em Ulisses? Nunca teve dúvidas religiosas antes de conhecê-lo".
Em suma, tanto um quanto o outro trazem verdades a serem ditas sobre a mesma religião. Inácio, que caminhou durante grande parte de sua vida à cegueira de suas crenças, na solidão, isolado do mundo como se aquilo fosse o correto, na verdade nada mais é do que um exemplo no homem medieval, o homem que não pensa por medo de ferir o que lhe foi ensinado ser puro. Já Ulisses, um ex-seminarista e que por vezes parece ser um anticristo é a figura exata do homem iluminista, antropólogo, porém com sua fé. Ele vem para mostrar que o homem pode ser feliz e pleno sem ferir o que diz a palavra de Deus. Tanto um quanto o outro não deixam de pecar, nem o revolucionário e nem o fundamentalista.
Eu poderia falar muito desse curioso conto, mas creio já ter falado demais e não quero "contar o filme antes de assisti-lo", se é que já não contei . Um conto surpreendente capaz de conturbar àqueles de psicológico fraco, principalmente se forem ligados ao catolicismo. Um conto que beira doses de horror ao chegar o tão esperado final.
2º - "Negro que te quero negro".
Não foi pela morte do amigo que a necrofilia de Thânatos fica evidente, mas sim pelo seu psicológico, sua forma de vida, e principalmente seus sonhos. Tudo isso são um elo entre as mudanças corporais, ideais, dúvidas e medos de um garoto adolescente mudando de fase.
3º - "Vem por aqui, eu vou por aí."
Um conto muito gostoso de ler . Retrata toda a dúvida de um personagem sobre sua própria individualidade. Um personagem que não sabe o que ou quem é. Servidor público, um contador de meia idade que é convidado à uma suposta exposição de vinhos do porto, acaba sendo direcionado a um endereço onde ocorre uma demonstração de hipnose, dirigida por um Frei Franciscano que palestrava sobre coisas sobrenaturais, fenômenos e parapsicologia. Durante toda a demonstração ele observava curioso a tudo.
4º - "Luz não. Só as trevas dos cabelos dela".
O mais cruel dos contos. Relato cru, nu e real da Destrutividade.
Adolfo Aggres no auge de seus 80 anos decide contar sua história. E no início logo no primeiro parágrafo já deixa frisado "Não vai dar prazer a quem a lê. Pode também, não dar asco" . É uma história espantosa mas interessantíssima (como todo o livro) .
Posso afirmar que a revolta, no qual citei ter sentido ao ler o livro logo acima na apresentação, provém deste texto. Insano e medíocre. A mim causou asco, e certa admiração pela ousadia do autor. Entre tantas escórias e insultos é um texto fantástico e magnífico! Citando partes das falas de Adolfo Aggres espero conseguir pôr em palavras as sensações causadas, quanto menos falar desse conto melhor, assim aguça os extintos dos leitores.
Página 88 ; "O mundo lá fora sempre me apavorou. Então, procurei destruí-lo. Frente ao mundo, sempre me senti impotente, por isso, desde criança, cuidei de afastá-lo de mim, eliminando-o. A idade dá-me crédito e confiabilidade. Posso dizer tudo o que fiz."
Percebam o ódio iminente do personagem para com o mundo. Ele começa a contar suas façanhas cruéis a partir da infância.
Na época tinha seis anos de idade somente, quando diz ter destruído um presépio de natal feito por um colega do qual mais a frente relata odiá-lo por ser representante de uma alma pura e artística. E relata o seguinte "Aquele presépio ameaçava minha vida. E eu o destruí ( Pg. 89)... Não era inveja. Era a vontade de destruir a primeira manifestação artística que me impressionou... Tudo que destruí é a soma da vida que não vivi ( Pg.90)". Diz ainda o personagem, que aos dez anos de idade esse mesmo colega era ainda mais insuportável, o primeiro aluno de todo o colégio, aquele voltado e enredado de grande prestígio onde fosse. Conta que em um dia foi nadar com ele, que o rio era a alma do amigo odiável. Abaixo o trecho crucial desse desenrolar, leiam atenciosamente :
"O rio era sua alma. A vida seguia em função do rio. Era verão, mês de janeiro, quatro anos depois que destruí o presépio. Como odiava este colega! Era um artista. (...) Compunha pequenas peças para representação teatral. Adaptava música de sucesso à letras que inventava. Nas artes plásticas era imbatível. No Sete de Setembro idealizou e executou sozinho o ambiente em que se realizaria uma atividade cívica. E só tinha dez anos ! Era inevitável. Tinha que morrer. Convidei-o a nadar. Seguia comigo alegre e festivo sem saber que se dirigia ao matadouro. Andava ao lado dele e, sem olhar-lhe o rosto, observei."
"Se odeio o mundo, odeio quem me trouxe a ele. Questão curiosa a história. Quando o filho mata os pais, estamos diante de tragédia, drama, horror nefasto. Quando os pais matam o filho, estamos diante da ordem, da revolução, da obediência. Orestes mata o pai e assume o poder sobre Missenas (...) Édipo mata o pai e casa-se com a mãe. Nunca foi tão amaldiçoado em toda a história. Contudo, Hércules, num infanticídio impiedoso, mata os filhos que gerou com Mégara e só é lembrado como herói (...) Matar os pais é tragédia. Matar os filhos é santidade. Planejei matar meus pais vagarosamente. Comprei arsênico (...) Diariamente ministrava-lhes às refeições uma migalha do mineral venenoso. Não suportaram trinta dias(...) Ele, mais fraco morreu dia 20 de outubro (...) Ela, mais forte, morreu seis dias depois. Não me arrependo. Só onde há túmulos é que pode haver ressurreição (...) O que foi mel para os outros, para mim era veneno. Nunca me arrependi do que fiz. (...) Aos quinze dias de envenenamento, minha mãe já havia percebido que eu os estava matando. Continuou a aceitar a comida que eu lhe dava, sabendo envenenada. Queria morrer. Colaborei. Lembro de vê-la morrendo num gemido de virgem violada. Seus cabelos eram negros... e eu amava as trevas dos cabelos dela."
5º - "O sol era a sombra de seus olhos".
6º - "A travessia do rio Aqueronte".
Drogação.
O personagem relata sentimentos antigos pelo seu pai que servem como indício de revoltas internas que levaram-no a drogar-se. Contudo não percebe-se razões plenamente evidentes de terem lhe acometido tal fato. Como se o autor fizesse desse personagem, um vácuo, onde o leitor poderia colar a própria história, a própria interpretação.
O rapaz cai no mundo das drogas através da bebida, torna-se alcoólatra e em seguida adere ao uso de cocaína e crack. Ele tenta culpar seu pai, demonstrando sentimentos conflitantes como já comentado, por todas suas escolhas, porém não encontra argumentos, por isso seus motivos não são tão visíveis. Como todo jovem rapaz, teve seus sonhos, os quais abandonara para as drogas, apenas pelo desinteresse em viver. Uma única vez tentou livrar-se do mal, sendo acometido de derrota decide de fato viver uma vida inteira de falhas.
7º - " Barro nas mãos do oleiro" .
Sadismo.
Sadi é um homem sádico. Um homem fora de acusações visíveis de sua crueldade, vestia-se bem para seus empregos e portava-se naturalmente, era culto e redigia textos impecáveis. Era casado e torturava sua esposa em suas relações sexuais. É de fato espantoso. Seu primeiro emprego, o de segurança, demonstra em um dos relatos ocorridos no trabalho, que algo no passado dele acontecera fazendo-o detestar ser enganado. Tal relato se deu em uma festa de adolescentes, onde à cargo do ofício ele exige o convite de um garoto que aponta para o colega de trás, afirmando que o convite estava com o mesmo, porém tudo não passava de mentiras. Então Sadi encolerizado segue o rapaz pela festa e em uma emboscada espanca-o até a morte.
Não muito distante de nossa atual realidade, não é mesmo?
Em outro ponto, Sadi prende a vaga em que ocupara no estacionamento do shopping, outro carro esperava-o sair de lá por ser a única que iria estar disponível. Apenas pelo prazer de assistir a irritação de quem esperava-o, ele então demora fingindo verificar coisas no porta-malas. Controlou por quinze minutos a vida daquele homem que aguardava e isso acometia-o de estupendo gozo.
Folheando um pouco mais, em seu emprego fora designado por seus diretores a distribuir vale-transporte e vale-refeição em véspera do feriado de Corpus Christi para os demais funcionários, gozava de confiança. Quando avista um senhor de oitenta anos, digno de caridade, o qual necessitava muito dos tickets, Sadi diverte-se à suas custas, inventando desculpas que impossibilitavam o senhor de gozar de seu direito, ora dizendo que o expediente encerrara, que os vales tinham sido perdidos, e ainda mais cruel, disse certa vez que cancelaram o direito dos vales do velhote, pois esse muito pobre, vendia-os para comprar mais comida.
Sadi sabia disfarçar seu caráter sádico, visto que em um exame psicotécnico fora aprovado em primeiro lugar, pois o exame exigia de uma mente o contrário do que era a mente daquele homem.
Um texto encantadoramente intrigante. Nele, eu espelho muitas respostas para atitudes corriqueiras e violentas do dia a dia. Vale a pena ler com vontade, com sede e fome literária.
8 º - "Quem tem lágrimas, prepare-se para derramá-las" .
Salma é masoquista justamente por saber o que é melhor para ela, saber que tem suas opiniões e direitos, mas escolhe o bem do próximo ao seu próprio em todas as circunstâncias, acreditando estar feliz com isso.
O texto inicia em "Salma sempre se julgou inferior, impotente e insignificante (...) Mas não era feia nem desprovida de inteligência". Na página 161, uma das primeiras do conto, fica evidente o "comodismo" de Salma.
"—Você será minha. — Igor, seu namorado diz à ela .— Porque tem tanta certeza? — Ela pergunta.— Porque tens jeito de tímida e reservada.— E a timidez lhe agrada?— O tímido é cauteloso, vê perigos inexistentes e nunca se atreve."
O ápice do conto, ao qual estou corroendo-me os dedos para não revelá-lo, se dá por um diálogo entre Igor e ela, onde fica claro que ela busca um caminho de santidade sendo submissa a ele e que ele não aceita sua submissão, pois é sádico e seu prazer vem do sofrimento obrigatório. Neste dia eles tem relações sexuais, Salma era virgem e ela mesma procurara esse propósito, onde Igor é violento e machuca-a. A partir daí ela passa a perceber seu masoquismo.
Salma começa a arrepender-se de nunca ter vivido e sempre obedecer. Sabia que sua segurança estava em Igor, mas também tinha consciência de que deveria deixá-lo, pois também conhecia a dificuldade que seria satisfazê-lo com seu sofrimento. Estava assustada com tudo o que vinha acontecendo entre eles. Pensando ser feliz ela era infeliz, vivia um mal e gostava disso.
Em suma, o masoquismo de Salma fora uma forma de automatismo, entretanto para ela, seu masoquismo começara quando ela percebeu sua infelicidade. Sentia-se segura com Igor e no entanto ele é quem necessitava dela. Relatos dos quais eu me recuso a contar, para não perder a graça, mostram isso. Igor era infiel à ela por não amá-la. Porém tinha poder sobre ela, e o poder era uma forma de libertação, libertação essa de uma doença que ele tinha. A mulher era a única pessoa na qual Igor cuidava ao invés de cuidar-se. Até ficar só, e precisar de Salma, onde ele voltava a estar preso à sua doença.
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