Arquétipo Feminino dos anos 90: A mulher "Sexy Symbol".

Falemos de um dos arquétipos femininos dos anos 90: a mulher sexy symbol. 
Aquela em que o corpo foi superexposto através de uma nudez apelativa a uma "brasilidade da mulher", que desde as décadas anteriores de 70 e 80 já era explorada, mas na década de 90, ao que se remetia à moda fitness, praia e íntima, tivera uma sexualização ainda maior.

Além da falta de espaço, o abalo atingiu a vida pessoal e até amorosa da intérprete: “O sucesso da Tiazinha e toda aquela exposição iam sufocar questões que eu queria resolver. Dinheiro esconde tudo. A personagem já estava maior do que eu. A Suzana não tinha uma vida própria. Eu não tinha uma vida, pensava que ninguém ia me amar de verdade. Os homens se aproximavam de mim por interesse. Eu não tinha paz”, explicou. [Extraído da matéria que vocês podem ler aqui: Aventuras na História - UOL ]

São muitos os debates que cabem sobre a relação da mulher com a literatura, mas o que eu quero dar enfoque aqui, é a demanda que temos da necessidade por lermos mais sobre mulheres reais, anseios femininos reais, e representações que nos valorizem e nos levem a compreender a manifestação da mulheridade conforme os desejos delas, e não deles. E nada disso é invenção da roda ou moda de feminista do século 21. São incômodos antigos, que frequentemente nos fazem crer que já estão superados, mas não estão. 

Já dizia Foucault, tudo na sociedade está atrelado ao poder e as relações sexuais são guturalmente uma manifestação dele também. 

Eu sei, o assunto é longo, é extenso, difuso e pode até dar nó nos neurônios, mas vamos começar devagarinho essa nova coluna sobre escrita criativa, em que poderemos debater sobre construção de identidade feminina na literatura, entre tantas outras coisas. 

Tia Ray volta em breve, com mais profundidade sobre o assunto. Para hoje, a lição é: investigar quem são as mulheres personagens dos livros que vocês andam lendo e escrevendo. 

Elas estão em quê lugar de fala? São mulheres pretas? Homossexuais? Bissexuais? Heterossexuais? Brancas? Indígenas? Asiáticas? De que raças, etnias, credos e crenças? 

Sobre estas mulheres que vocês leem e escrevem, elas estão dentro de algum estereótipo? Quais? E uma pergunta primordial que você pode fazer para tua narrativa é: o que torna a minha personagem empoderada neste livro? 

A partir dos indicativos que você perceber, pesquise sobre o que as comunidades femininas tem dito a respeito. 

Por exemplo: "minha personagem é uma girl boss, por isso, ela é empoderada". DUVIDE. Será que é mesmo? Ou você está apenas retratando uma projeção masculinizada da sua personagem feminina pra dizer que ela tem "o poder de ser a CEO"?

O segredo está na constante dúvida. 

Escritoras e escritores que não tem curiosidade, que não tem comichão de investigar e problematizar as coisas não são menos escritoras e escritores, mas são mais suscetíveis a reproduzir correntes. E cá entre nós: deus* me livre de correntes! Porque essa ideia de que corrente potencializa, esconde o objetivo do que verdadeiramente faz uma corrente: prende. Aprisiona. 

E não sei não, mas essa coisa de que o que está preso está seguro me cheira um tanto perigosa.

*a palavra deus ali retratada em minúsculo foi propositalmente escrita dessa forma, a fim de não relacionar a uma divindade específica, sendo apenas, uma locução de interjeição popular.

Embora possa parecer um símbolo sobre a liberdade do corpo da mulher e seu ethos de feminilidade, na verdade, é sobre o interesse masculino e midiático da época em como retratar as mulheres. 

Estas mulheres foram mais uma forma, de atender aos interesses masculinos pela espetacularização do corpo feminino. Este modelo de comportamento mais "libertino" da mulher, culminou no ideário das mulheres "empoderadas" dos anos seguintes. E tudo isso se trata de uma construção social intencional, por parte da mídia, dos homens, e até mesmo das mulheres que buscaram por maior afirmação de sua própria sexualidade.

Então, eu quero te propor a repensar o que viemos consumindo e retratando na literatura feminina, como modelos de consumo. Seja no ideal do homem perfeito que queremos, até mesmo no ideal de que tipo de mulheres gostaríamos de ser. 

Em romances que tematizam com certa problemática as figuras dos "CEO" e "Mafiosos", dos romances eróticos ou "hots" que retratam uma sexualidade de dominância masculina (no estilo BDSM e da virgindade feminina) podemos notar figuras que tem sido muito popularizadas. Mas, estas figuras são livres de pré-conceitos e reforços machistas? Temos conseguido blindar este tipo de temática de uma abordagem de uma propagação pejorativa e negativa sobre a mulher? Ou elas tem se popularizado como frutos de consumo de leitura feminina de forma deliberada e descuidada? 

Lembrando que, o problema não é a temática, é sempre a intenção que a narrativa carrega e a forma como ela é definida e retratada. 

Ao longo dos anos, a literatura foi utilizada como potencial mobilizador do pensamento e comportamento feminino, desde as revistas femininas - em que muitos estudos se baseiam, inclusive os meus -, até mesmo ao gênero literário. O romance não é dito "literatura de mulher" à toa. Há todo um conceito construído socialmente pelo viés sexista atrás disso. 

Tais questões podem nos colocar em confronto direto com o pensamento atual de que tipo de reforço de comportamento feminino, nós escritores e escritoras, leitores e leitoras, temos não só reproduzido, como aceitado socialmente. 

Problematizar a exposição do corpo feminino não é um retrocesso, é uma atitude de reflexão crítica necessária para compreendermos as múltiplas relações e intenções das dinâmicas sociais sobre a mulher. 

Por exemplo, o que todos achavam na década de 90 um grande avanço feminista: ter o corpo feminino exposto e valorizado por sua sexualidade, na verdade, contribuiu com o aumento do assédio da mídia - e consequentemente - dos homens à exploração da sexualidade da mulher. 

Em entrevista à UOL em maio do ano passado, Suzana Alves retomou o assunto das dificuldades impostas pela personagem "Tiazinha", que além de ter lhe gerado uma ampla repercussão contribuindo para a construção da sua carreira, também influenciou negativamente em aspectos pessoais e emocionais, da "Suzana". 

Ser uma sexy symbol, sair nua em revistas masculinas como a Playboy (aliás, o ápice da revista sem dúvidas estava entre a década de 90 e a primeira década dos anos 2000), o apelo público prioritariamente masculino e a responsabilidade de "modelo feminino" impressos na personagem que Suzana interpretava, em uma fase de sua vida em que ela acabava de sair da adolescência, afinal, Suzana tinha apenas 18 anos na época...Tudo isso, perpassou à pessoalidade, sua autoconstrução e autoconhecimento acerca da própria feminilidade e papéis sociais. Uma das reclamações da atriz, é que as pessoas não conseguiam separar a pessoa da personagem, principalmente os homens e portanto, lidava com o assédio e com o abuso contratual e desacordos em seus trabalhos. Desafios e estresses que levaram a atriz a abandonar de vez a personagem.

E sinceramente: o que a "Tiazinha" agregou às mulheres em termos de combate ao sexismo? O que ficou, foi um reforço cada vez mais pejorativo e a falsa ilusão de que libertar nossos corpos para a mídia, mostrar o bumbum, os seios, a barriguinha de fora, tenha sido uma conquista de liberdade. Nunca foi. Na verdade, foi mais uma das diversas concessões sexistas que interessam ao patriarcado da sociedade. 

Cada dia me convenço mais de que, esta batalha foi e ainda é, a faca de dois gumes do feminismo: se escondíamos nossos corpos, "gerávamos restrição da expressão feminina" e "alimentávamos a curiosidade masculina"; se o expomos com demasia como ainda é atualmente, alimentamos o desejo sexual dos homens pelo corpo feminino de forma deliberada. Construindo uma imagem de desvalorização da própria sexualidade feminina que passa a ser percebida como "atributo máximo da mulher ao servir masculino". Ou seja, a se tratar de machismo, qualquer estratégia de expressividade à autonomia da mulher pode ser virada contra ela em justificativas que tendem a favorecer o controle de nossos corpos pelo patriarcado, bem como, aos homens, reforça uma idealização de que eles tem "poder" sobre a mulher. 

Então, quando forem retratar a mulher empoderada, a mulher chefe de sua própria vida, a mulher chefe no seu trabalho, a mulher enlouquecedora de homens na cama, a mulher de sexualidade livre, homossexual, bissexual ou heterossexual em suas obras literárias tenham atenção a estes modelos contraditórios. Observem os arquétipos femininos através do tempo, observem os estereótipos femininos na literatura brasileira, em variados gêneros e épocas. E se for para falar da virgindade feminina, da orientação sexual das mulheres, da inversão dos papeis das mulheres, (principalmente na literatura erótica que geralmente é lugar de expressão de uma mulher subjugada) façam isso com cuidado, com reflexão crítica, com estudo.

Não dá para ignorar que as mulheres no Brasil são o público leitor mais frequente do mercado nacional. Desde a versão  entre 2015 e 2016 da pesquisa do Instituto Pró Livro, intitulada "Retratos da leitura no Brasil", elas já representavam mais de 50% das consumidoras literárias no país, e desde a pandemia, elas tem buscado mais representatividade na literatura, segundo a matéria da Folha de Pernambuco. 

Precisamos enquanto mulheres, consumidoras de literatura, observar com atenção quem somos e como somos retratadas nas artes, sejam elas cinematográficas, musicais, literárias, artes plásticas... Precisamos entender quem está forjando a nossa imagem e como! E claro! Sermos conscientes de que é, muita ingenuidade achar que um livro, uma música, ou uma arte qualquer que seja, está valorizando a mulher e reconstruindo sua "ideia de feminilidade" apenas porque é assinada por uma mulher. Como vítimas da educação sexista, é absolutamente comum que estejamos reproduzindo influências contrárias ao que queremos verdadeiramente, ou deveríamos querer.

Os livros hot, estão impregnados da sexualidade da mulher explorada sobre a ótica e ponto de vista de satisfação do homem. ESCRITORAS, ATENÇÃO: Não é porque você escreveu que o bonito do seu mocinho proporcionou orgasmos incríveis em lambidinhas sexuais nas genitálias femininas (perceba o meu tom de ironia), que pronto, você cumpriu com o feminismo. O fato de um homem dar prazer a mulher em seus momentos íntimos, também está impregnado de uma relação de troca do patriarcado. Porque para ele, a satisfação da mulher muitas vezes, está atribuída à sua própria sensação de poder. Então, o buraco é muito mais embaixo do que você pensa, querida.

"Ray, pelo amor de Deus, se escrever hot não basta, como que eu faço? O que é que basta?" - resposta: a pergunta não é essa. 

Escrever hot é uma grande ferramenta de modificação do pensamento sexista também. Aliás, escrever para mulheres. Como eu falei, tudo o que envolve estratégia de consumo, carrega intenções. E é nas intenções que você deve focar escritora, e escritor. Nas reais intenções que existem em torno da literatura erótica feminina. E quando se trata de construir pensamentos, toda ideia só é potencializada quando observado o contexto. Por isso, jogar uma cena de hot no seu romance em que uma mulher tem relações loucamente prazerosas com um parceiro ou uma parceira não será o suficiente se, em torno da intenção de gerar prazer e expectativa em quem for ler, por parte das personagens, você não trabalhar o contexto dessa idealização do próprio prazer e relação mútua. 


REFERÊNCIAS
Ferrari, Wallace. Suzana Alves viveu uma dura saga até largar Tiazinha! [...] Aventuras na História, por UOL, 2021. Leia aqui.
Lira, Mylena. Brasileiros lendo mais! Editoras comemoram crescimento do setor de livros e apostilas. JCC Concursos, 2022. Leia aqui.
Muta, Juliano. Mulheres buscam maior representatividade na literatura. Folha de Pernambuco, 2022. - Leia aqui. 
Magalhães, Lourdes. Por que as mulheres brasileiras ou francesas leem mais que os homens? Primavera Editorial, 2011. Leia aqui.

As personagens da "Tiazinha", vivida por Suzana Alves (que foi criada inclusive pelo apresentador Luciano Huck em um quadro no seu programa anterior ao Caldeirão, para "divertir espectadores e torturar homens"), a personagem da "Feiticeira" vivida pela modelo Joana Prado, foram modelos das ditas "mulheres gostosonas" que nos anos 2000  viriam a ser nomeadas, "mulheres frutas". Assim como, as dançarinas de palco de programa de TV e grupos como "É o Tchan", tornavam-se um modelo atualizado das antigas "vedetes". 

0 comments